A peça foi dedicada ao maestro Bruno Barreto que há anos desenvolve projetos de formação de instrumentistas e grupos orquestrais em Palmas-TO. Trata-se de um trabalho de idealismo e pioneirismo, pois a cidade ainda oferece pouca estrutura, recursos humanos e investimento institucional para o desenvolvimento dessa vertente de prática e formação musical. A escrita da peça dialoga com essa realidade concreta. Minha intenção era criar uma peça que fosse acessível, desafiadora e pedagógica, para contribuir com o processo de formação nesse contexto específico e, posteriormente, ser também conhecida e executada por outras orquestras juvenis.
Em 2013, o maestro Bruno trabalhava com um número grande de instrumentistas em formação, sendo os de cordas em nível mais iniciante e os de sopros em nível um pouco mais proficiente. Assim, as partes de cordas estão escritas para poderem ser executadas em primeira posição (com uma ou outra exceção). Enquanto isso, alguns solos para sopros procuravam tirar partido da segurança de professores ou estudantes com maior experiência que eram inseridos no grupo.
A ideia de propor a realização de ações “cênicas” no transcorrer da partitura, tem a ver com o meu desejo de instigar o grupo ao envolvimento total com a performance, ressaltando as relações/diálogos dentro dos naipes e entre os naipes e a explicitação das ideias e gestos expressivos. Essas ações podem, em alguns momentos, ter também um caráter bem-humorado, o que é bem-vindo e até necessário (mais sobre isso na continuação do texto). Da forma como foi construída a escrita, as ações cênicas talvez possam ser consideradas opcionais, uma vez que sua omissão não prejudica a continuidade da execução da peça. A escolha fica à critério dos intérpretes, embora, do meu ponto de vista, elas tenham sua razão de ser e integrem a proposta.
Além da parte técnica de cada instrumento, outra área que sabia ser uma necessidade de desenvolvimento no projeto dirigido pelo maestro Bruno (em termos de formação dos instrumentistas) era o conhecimento musical geral: informação sobre estilos, possibilidades e contextos sociais e históricos da performance musical. Mas isso é um mundo de informação! E esse é o ponto de partida para o título: Mini-Mundo.
A peça é, portanto, concebida como uma miniatura desproporcionalmente ambiciosa que pretende representar o mundo da música, como os mini mundos de atrações turísticas, não necessariamente com precisão, mas de forma cativante. Assim, cada movimento faz referência a um estilo, sem pretensão de ser fiel, mas resultando da minha memória e abordagem livre de elementos desses estilos. Como as ações cênicas deixam transparecer, as alusões possuem um caráter irônico, brincando com estereótipos, quase como em performances cômicas do tipo como tais compositores tocariam “Parabéns pra você”.
Estruturalmente, a peça consiste na releitura sucessiva de um mesmo tema melódico em cinco possibilidades texturais.
O primeiro movimento, Kyrie eleison, remete à música sacra renascentista e suas texturas polifônicas e antifonais, alternando os naipes e o tutti, com tratamento motívico do tema em pontos de imitação. O canto inicial estabelece a referência ao coro e uma atmosfera de solenidade. A ação de tocar de pé e sentar gradativamente apresenta cada naipe e espacializa a textura antifonal do movimento.
Fantasia quasi una sonatina, segundo movimento, é a homenagem ao estilo clássico, ressaltando a textura homofônica, figurações de acompanhamento e gestos estruturais estereotipados, como as pontuações de cadências pelos metais e percussão. O tema, agora em modo maior e articulado de maneira ágil, passa por modulações e é fracionado em motivos para sugerir ideias de desenvolvimento e liquidação. Os cochichos com termos de expressão musical retratam os naipes tramando para fazer o caráter do movimento oscilar. A ação cênica de olhar súbito ressalta a surpresa causada pelas interjeições mais explosivas, principalmente quando o naipe de saxofones, cujo timbre é estranho à textura orquestral do período clássico, acaba forçando sua entrada no movimento.
O terceiro movimento, Lied ohne Worte (canção sem palavras), evoca o romantismo. O tema, em versão lírica, é acompanhado por contracantos e re-harmonizações expressivas. A orquestração é mais densa e colorística. A forma segue o estabelecido pelo título, uma canção em que a melodia é enquadrada por breves introdução, interlúdio e coda. A ação cênica realizada pelos naipes de saxofones, metais e percussão de mover os braços durante a última apresentação do tema remete ao gesto de plateias de shows de música pop durante a execução de baladas românticas. Seu caráter irônico pode ser reforçado com cada músico realizando o gesto com a lanterna do celular ligada, como também seria divertido envolver a plateia do concerto na ação.
No quarto movimento, Sudoku, a referência é às abordagens composicionais parametrizadas. No meu planejamento composicional, o tema foi reinterpretado como uma sequência de números que fundamentam a seleção de combinações sonoras verticais e de durações e pausas. As ações de levantar e sentar escritas ritmicamente devem ser executadas de forma precisa e mecânica. A ideia expressiva do movimento é o fascínio de um conjunto complexo de engrenagens que ninguém sabe direito para que serve, mas reconhece que é uma construção digna de admiração.
Por fim, o quinto movimento, Suça, remete à performance de arranjos de música popular por grupos orquestrais. O título faz referência específica à cultura popular tocantinense, já que a suça (ou sússia) é uma manifestação da região. Na escrita, ideias rítmicas da dança são adaptadas para acompanhamento de uma versão balançada do tema. Em uma sessão próxima à conclusão da peça, a orquestra parte para palmas e vocalizações, usando a expressão “é jiquitaia” que se ouve nas rodas. Aqui, o que se pretende é que finalmente, a ironia se dissolva em empolgação genuína, unindo instrumentistas e plateia no júbilo da música orquestral.
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